COLESTEROL
“ O DIABO (que) NÃO É TÃO MAU COMO O PINTAM” !
Polybio Serra e Silva
Por nos parecerem pertinentes, e talvez ainda actualizadas, as afirmações que há vários anos publicámos, já não sabemos muito bem onde, “voltamos à carga”, defendendo a nossa dama, recordando o que então escrevemos:
“Que nos perdoem aqueles que, envolvidos na guerra das estatinas , são adeptos duma terapêutica agressiva do colesterol, se continuamos a hastear a bandeira da paz, reafirmando: ”colesterol em excesso mata … mas sem colesterol não há vida”! Não se pense, contudo, que somos “anti-estatina” pois entendemos até que a terapêutica com esta família de fármacos é insubstituível, mas é preciso saber quando e até quanto.
Passado meio século, recordamos que realizámos a nossa Tese de Licenciatura: O Laboratório no diagnóstico precoce da aterosclerose (Estudo comparativo das reacções de Kunkel-fenol e Burstein com a colesterolemia e o lipidograma), impossibilitados de consultar a Medline ou a Internet, que na altura ainda não estavam disponíveis, só conseguindo 33 referências bibliográficas, das quais 7 em português. Hoje conseguiríamos mais de 33 mil !
Mas mesmo nesse remoto tempo, em 1958, não obstante a carência de referências bibliográficas, como escrevemos na nossa Última Lição, já “ para alguns autores, o colesterol era um dos factores de risco, da aterosclerose, da trombose, enquanto outros o negavam categoricamente, e no meio, por sua vez, os que, cautelosa e eclecticamente, tomavam a cómoda posição do talvez”. Demos então, como também aí escrevemos, o nosso parecer ao dizer que “podemos lucrar, tendo cuidado em rastrear o colesterol elevado”. Mais tarde, 1972, em Tese de Doutoramento: Aterogénese experimental no rato - contribuição para o estudo de um modelo dietético, escrevemos também: “… a doença cardio-reno-vascular é uma doença da parede arterial de etiologia polifactorial em que, entre os demais, sobressaem como factores principais, quase taco a taco, o tabaco, e porque não a hipertensão. Mas à cabeça do rol, indiscutivelmente, o colesterol. E, ao olhar para trás, para o meu tempo de rapaz, noto uma diferença abissal…O que então era simples convicção hoje é certeza real: o colesterol é factor causal da doença arterial!”
Parece-nos que hoje já ninguém toma a referida “ cómoda e ecléctica posição do talvez”.
Mas toda a medalha tem anverso e reverso e, ao recordarmos que o recém-nascido tem um colesterol plasmático que oscila entre 50 e 75 mg/dl, pensamos que, provavelmente, este será o limite de saturação dos receptores específicos das LDLC e, portanto, abaixo destes níveis teremos que ter em atenção as hormonas esteroides e as membranas celulares.
Porque não há dúvida, sabemo-lo perfeitamente, o colesterol e os seus derivados são fundamentais para a produção das hormonas e imprescindíveis na formação das membranas celulares e na produção da vitamina D, essencial no metabolismo do cálcio que, por sua vez, é importante na formação, conservação e regeneração do osso, o que significa que sem colesterol a vida humana não é possível.
Mas depois desta sua função fundamental para a vida, depois de viajar pelo fígado e tecidos, o excesso de colesterol deve ser reduzido, sem o que… pode matar.
“Reduzir o colesterol até quanto?” é uma frequente e pertinente questão, para a qual, há muitos anos, pedimos resposta em todas as reuniões médicas em que debatemos tal assunto e que é recentemente formulada, por Vaz Carneiro, no decorrer do XII Encontro Internacional de Angiologia e Cirurgia Vascular, em Dezembro de 2004, onde apresentou uma comunicação sobre “Controlo dos factores de risco cardiovascular”.
As respostas a tal pergunta, baseadas habitualmente nas mais recentes Guidelines, nem sempre nos convencem, principalmente quando emitidas pelos radicalistas que chegam a perguntar ao expert em lipidologia : - posso tentar reduzir os valores do LDLC para baixo dos 50 mg/dl ?, questão à qual o interpelado responde: - lá tentar pode tentar mas, como o organismo não é estúpido, certamente não vai obedecer! .
E é, na verdade, neste mecanismo de defesa que nós confiamos.
Estamos perfeitamente convencidos de que um doente receberá muito maior benefício com uma redução modesta, mas simultânea, de vários dos seus factores de risco, do que com a descida, até à exaustão, de um só deles, isoladamente.
Por tal razão julgamos muito importante a prática rotineira da determinação do Risco Cardiovascular Global (RCG) de forma a podermos, usando como variáveis, a idade, o sexo, o tabagismo, a pressão arterial sistólica e o colesterol total, avaliar o risco do aparecimento dum evento cardiovascular agudo, nos próximos 10 anos, duma forma global e integradora em todos os seus aspectos e diversas contribuições, pois só assim se poderão definir prioridades.
A nossa experiência, bebida no tratamento estatístico dos resultados obtidos nos Rastreios efectuados pela Delegação Centro da Fundação Portuguesa de Cardiologia ( FPC), com Luiz Santiago e Aurora Branquinho, já nos permitiu dizer que “ nos nossos rastreados existe uma elevada prevalência dos factores de risco da doença cardiovascular ( DCV) e uma baixa percentagem de indivíduos em terapêutica o que nos levou a chamar a atenção para a importância de campanhas de informação, sensibilização e intervenção, em factores de risco para DCV, no grande público e, também, nos Agentes de Saúde”.
Com o emprego das Tabelas de avaliação do RCG a 10 anos começamos a considerar de grande importância dar atenção ao Risco Moderado, pela possibilidade de intervir numa situação imediatamente anterior ao Risco Alto, que já justifica intervenção farmacológica, enquanto o Risco Moderado poderá passar a Ligeiro com a simples intervenção em estilos de vida saudável, no tocante à alimentação e actividade física, bastando muitas vezes uma redução de 5% no peso para normalizar os diversos parâmetros alterados.
Por outro lado, e uma vez que o estudo comparativo que fizemos, entre a II Task Force e o Score. nos mostrou um maior número de indivíduos em Alto Risco, quando avaliados por esta última Tabela, continuamos a insistir na necessidade duma maior sensibilização das populações para a prática do estilo de vida saudável mas perguntamo-nos, também, nestes casos, se não devemos, mais precoce e agressivamente utilizar, quando justificada, uma terapêutica farmacológica preventiva.
Estas as razões porque fazemos nossas, por virem ao encontro daquilo que sempre temos dito, as palavras de Vaz Carneiro que, respondendo à tal pergunta que sempre tanto nos preocupou: “ reduzir o colesterol até quanto?”, disse que ” uma das prioridades na avaliação da DCV é a identificação do doente de médio e alto risco” e que “ se um doente apresenta médio ou alto risco cardiovascular, depois da avaliação quantitativa dos factores de risco, nele presentes, deverá ser rigorosamente estratificado o seu risco individual, avançando-se para uma intervenção terapêutica, mas só nos casos em que isso efectivamente valha a pena”.
Assim, no que respeita à prevenção secundária não se colocam quaisquer dúvidas, sendo obrigatório actuar farmacologicamente, mas no tocante à prevenção primária muitos problemas se levantam, pelas consequências clínicas e pelo impacte fármaco- económico.
Devemos ter sempre em conta que o colesterol é pouco relevante, se pensarmos em doença cerebrovascular ou arterial periférica, mas assume grande importância em termos de doença coronária.
Então, “ reduzir o colesterol até quanto?”
Parece-nos que, para responder a esta pergunta, há que pensar que existem dois diabos de colesterol: um mau (LDLC) e um bom (HDLC), e que o mau ainda é pior quando as partículas LDLC, que o constituem, são pequenas e densas (padrão B), sendo, por isso, mais aterogénicas e, por outro lado, recordar, também, com Castelli, que a síndroma lipídica constituída por aumento dos triglicerídeos associado a valores baixos de HDLC é mais gravosa para a parede arterial do que a hipercolesterolemia pura, até por ser mais frequente, levando-nos à obrigação de reduzir os trglicerídeos para valores da ordem dos 150 mg/dl, onde parece que as LDLC mudam de tamanho e densidade (virando fenótipo A), o que as torna menos aterogénicas.
Em nosso entender, portanto, para dar resposta a “reduzir o colesterol até quanto?”, julgamos ter de considerar duas questões:
HDLC quanto mais melhor?
LDLC quanto menos melhor?
No que respeita à primeira pergunta parece-nos que a já velha ideia, que sempre defendemos, de que um indivíduo com mais de 70mg/dl de HDLC está protegido pelo síndrome da longevidade, está cada vez mais reforçada com os resultados obtidos com o recombinante apo A1 Milano, que mobiliza rapidamente o colesterol e reduz as placas de ateroma, em animais, em apenas 48 horas, após uma única infusão.
No tocante à segunda questão, temos dificuldade em aceitar as conclusões do Estudo Avert, que nos fala duma nova era do LDLC quanto menos melhor, na medida em que acreditamos que valores destas lipoproteinas inferiores a 60-75mg/dl poderão pôr em perigo as membranas celulares e as hormonas esteroides.
Parece-nos contudo que, talvez mais do que especular até quanto reduzir o “diabo do colesterol”, será bem mais importante pensar no interesse da relação CT/HDLC na medida em que esta nos indica o patamar de equilíbrio entre a sobrecarga periférica em CT e a capacidade da sua depuração pelo organismo, permitindo a identificação dos indivíduos que se pensava estarem isentos de risco, por serem portadores dum CT relativamente baixo, e os que, por possuidores dum HDLC elevado, não obstante apresentarem níveis de CT relativamente altos terem, afinal, um risco moderado ou baixo, o que acontece quando o Rácio CT/HDLC < 5.
Tudo isto, afinal, para dizer que o médico, ao ter que tomar a atitude de prescrever um hipolipemiante, deve estar bem alicerçado na certeza de que ele se justifica, na medida em que tal prescrição será para toda a vida, com as repercussões que se adivinham e deverá, também, naturalmente, ter confiança no laboratório a que recorre que, por sua vez, se obrigará a fazer controlo de qualidade.
Parece-nos que, à luz dos conhecimentos actuais, ao perfil lipídico, para avaliação do risco cardiovascular, sugerido, em 2002, nas Recomendações da Sociedade Portuguesa de Cardiologia : doseamento do CT, HDLC e TG, já poderemos juntar o pedido do doseamento do LDLC, se determinado pelo método directo.
De facto, o NCEP diz que os métodos para a determinação do LDLC nunca devem ter um erro superior a 12%.
Acontece que a fórmula de Friedewald, método que até à data tínhamos à nossa disposição para o doseamento do LDLC, não cumpre as especificações do NCEP, na medida em que nos dá um E. total >12%.
O método directo LDL colesterol Plus, actualmente já à disposição dos técnicos de laboratório cumpre, esse sim, as especificações do NCEP, na medida em que nos dá um E. total << 12%.
A esta lista deve o clínico juntar o pedido da glicemia em jejum, para detectar um possível diabético que, à partida, é já um doente de Alto Risco, e as provas hepáticas, não esquecendo a CPK para possível controlo futuro de uma terapêutica com estatinas.
Deve, também, ter em conta os restantes parâmetros exigidos pelas Tabelas de determinação do Risco Cardiovascular Global.
A terminar, e uma vez que, há meio século, a nossa grande preocupação tem sido sempre a Prevenção Vascular e, por isso mesmo, naturalmente também os valores do colesterol, gostaríamos de não deixar dúvidas quanto à nossa maneira de estar perante a possível necessidade duma terapêutica redutora dos níveis do colesterol sérico: teremos que actuar com bom senso e, muito embora tendo a certeza de que o colesterol é um mafarrico que nos pode matar, devemos ter presente, como afirma a sabedoria do nosso povo que, muitas vezes, ” o diabo não é tão mau como o pintam” !